BALADADepois do sangue misturado,
depois dos dentes, dos lamentos,
estamos deitados, lado a lado,
e desfolhamos sofrimentos.
Temos trint’anos, mais trezentos
de sofredora exaltação.
É este o cabo dos tormentos?
Ai, não e não! Ainda não.
Saboreamos o passado
por entre os beijos mais violentos
e mais sutis que temos dado.
E o monumento dos momentos
oscila, desde os fundamentos,
a tão febril consagração.
Mas estacamos, sonolentos.
Agora, não. Ainda não …
Tudo se torna esbranquiçado:
eram azuis, são já cinzentos
os horizontes do pecado …
Há nos teus ombros turbulentos
cintilações, pressentimentos …
Os nossos corpos descerão
para que abismos lamacentos?
Ah! não, e não! Ainda não!
Eis-vos, de novo, movimentos
que apunhalais a inquietação!
E assim unidos gritaremos
que não e não! que ainda não!
CASATentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.
Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.
Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão …
Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.
LADAINHA HORIZONTALComo se fossem jangadas
desmanteladas,
vogam no mar da memória
as camas da minha vida …
Tanta cama! Tanta história!
Tanta cama numa vida!
Grabatos, leitos, divãs,
a tarimba do quartel;
e no frio das manhãs
lívidas camas de hotel ..
Ei-Ias vogando as jangadas
desmanteladas,
todas cobertas de escamas
e do sal do mar da vida …
Tanta cama! Tantas camas!
Tanta cama numa vida!
Já os lençóis amarrados
tocam no centro da Terra
(que o reino dos desesperados
fica no centro da Terra!)
e os cobertores empilhados
são monte que não se alcança!
Só as tábuas das jangadas
desmanteladas
boiam no mar da lembrança
e no remorso da vida …
Homem sou. Já fui criança.
Tanta cama numa vida!
Nem vão ao fundo as de ferro,
nem ao céu as de dossel. ..
Lembro-vos, camas de ferro
de internato e de bordel,
gaiolas da adolescência,
ginásios do amor venal!
Barras fixas. Imprudência.
Sem rede, o salto mortal
pra fora da adolescência …
E confundem-se as jangadas
desmanteladas
no mar da reminiscência …
Onde estás, ó minha vida?
Sono. Volúpia. Doença.
Tanta cama numa vida!
E recordo-vos, tão vagas,
vós que viestes depois,
ó camas transfiguradas
das furtivas ligações!
Camas dos fins-de-semana,
beliches da beira-mar …
Oh! que arrojadas gincanas
sobre os altos espaldares!
E as camas das noites brancas,
tão brancas!, tão tumulares!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Ó fragílimas jangadas,
desmanteladas … !
E nelas há quem se arrisque
sobre os pélagos da vida!
Cigarros. Beijos. Uísque.
Tanta cama numa vida!
E o amor? Tálamo, templo,
conjugação conjugal ..
O amor: tálamo, templo
- ilha num mar tropical.
Mas ao redor, insistentes,
bramam as ondas do mar,
do mar da memória ardente,
eternamente a bramar …
Já no frio dos lençóis
há prelúdios da mortalha;
e, nas camas, sugestões
fúnebres, turvas, pesadas …
- Sede, por fim, ó jangadas
desmanteladas,
a ponte do esquecimento
prà outra margem da Vida!
Sede flecha, monumento,
ponte aérea sobre o Tempo,
redentora madrugada!
Se o não fordes, sereis nada,
jangadas
desmanteladas,
todas roídas de escamas
da margem de cá da Vida …
Pobres camas! Tristes camas!
Tanta cama numa vida!
PRESÍDIONem todo o corpo é carne … Não, nem todo.
Que dizer do pescoço, às vezes mármore,
às vezes linho, lago, tronco de árvore,
nuvem, ou ave, ao tato sempre pouco … ?
E o ventre, inconsistente como o lodo? …
E o morno gradeamento dos teus braços?
Não, meu amor … Nem todo o corpo é carne:
é também água, terra, vento, fogo …
É sobretudo sombra à despedida;
onda de pedra em cada reencontro;
no parque da memória o fugidio
vulto da Primavera em pleno Outono …
Nem só de carne é feito este presídio,
pois no teu corpo existe o mundo todo!
TERNURADesvio dos teus ombros o lençol,
que é feito de ternura amarrotada,
da frescura que vem depois do sol,
quando depois do sol não vem mais nada …
Olho a roupa no chão: que tempestade!
Há restos de ternura pelo meio,
como vultos perdidos na cidade
onde uma tempestade sobreveio …
Começas a vestir-te, lentamente,
e é ternura também que vou vestindo,
para enfrentar lá fora aquela gente
que da nossa ternura anda sorrindo …
Mas ninguém sonha a pressa com que nós
a despimos assim que estamos sós!
NATAL, E NÃO DEZEMBROEntremos, apressados, friorentos,
Numa gruta, no bojo de um navio,
Num presépio, num prédio, num presídio,
No prédio que amanhã for demolido…
Entremos, inseguros, mas entremos.
Entremos, e depressa, em qualquer sítio,
Porque esta noite chama se Dezembro,
Porque sofremos, porque temos frio.
Entremos, dois a dois: somos duzentos,
Duzentos mil, doze milhões de nada.
Procuremos o rastro de uma casa,
A cave, a gruta, o sulco de uma nave…
Entremos, despojados, mas entremos.
De mãos dadas talvez o fogo nasça,
Talvez seja Natal e não Dezembro,
Talvez universal a consoada.
“LITANIA PARA O NATAL DE 1967”Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
num sótão num porão numa cave inundada
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
dentro de um foguetão reduzido a sucata
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
numa casa de Hanói ontem bombardeada
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
num presépio de lama e de sangue e de cisco
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
para ter amanhã a suspeita que existe
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
tem no ano dois mil a idade de Cristo
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
vê lo emos depois de chicote no templo
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
e anda já um terror no látego do vento
Vai nascer esta noite à meia noite em ponto
para nos pedir contas do nosso tempo
AVISO DE MOBILIZAÇÃOPassaram pelo meu nome e eu era um número
Menos que a folha seca de um erbário
Colheram no com mãos de zelo e gelo
Escreveram me sem mágoa um postal.
Convite a que morresse… mas porquê?
Convite a que matasse… mas por quem?
Oh! vago amanuence…
Oh! apressado e súbito verdugo…
Que te ocultas numa rubrica rápida e legível…
Que dirás tu do meu e doutros nomes
Que dirás tu de mim e doutros mais
No Dia do Juízo já tão próximo?
Que dirás tu de nós se nem treme
Na rápida rubrica a tua mão?
Bem sei que a tua mão só executa
Mas além do ombro a ti pertences.
Porém, pudera chorar, ter hesitado
A mancha de uma lágrima bastara
Para dar um sentido a esta morte
A que a tua indiferença nos convoca.
SECRETA VIAGEMNo barco sem ninguém, anônimo e vazio,
ficámos nós os dois, parados, de mão dada…
Como podem só dois governar um navio?
Melhor desistir e não fazermos nada!
Sem um gesto sequer, de súbito esculpidos,
tornamo-nos reais, e de madeira, à proa…
Que figuras de lenda! Olhos vagos, perdidos…
Por entre nossas mãos, o verde mar se escoa…
Aparentes senhores de um barco abandonado,
nós olhamos, sem ver, a longínqua miragem…
Aonde iremos ter? Com frutos e pecado,
se justifica, enflora, a secreta viagem!
Agora sei que és tu quem me fora indicada.
O resto passa, passa… alheio aos meus sentidos.
Desfeitos num rochedo ou salvos na enseada,
a eternidade é nossa, em madeira esculpidos!
GRITOCedros, abetos,
pinheiros novos.
O que há no teto
do céu deserto,
além do grito?
Tudo que é nosso.
São os teus olhos
desmesurados,
lagos enormes,
mas concentrados
nos meus sentidos.
Tudo o que é nosso
é excessivo.
E a minha boca,
de tão rasgada,
corre te o corpo
de pólo a pólo,
desfaz te o colo
de espádua a espádua,
são os teus olhos,
depois o grito.
Cedros, abetos,
pinheiros novos.
É o regresso.
É no silêncio
de outro extremo
desta cidade
a tua casa.
É no teu quarto
de novo o grito.
E mais noturna
do que nunca
a envergadura
das nossas asas.
Punhal de vento,
rosa de espuma:
morre o desejo,
nasce a ternura.
Mas que silêncio
na tua casa.
NATAL À BEIRA RIOÉ o braço do abeto a bater na vidraça?
E o ponteiro pequeno a caminho da meta!
Cala te, vento velho! É o Natal que passa,
A trazer-me da água a infância ressurreta.
Da casa onde nasci via se perto o rio.
Tão novos os meus Pais, tão novos no passado!
E o Menino nascia a bordo de um navio
Que ficava, no cais, à noite iluminado…
Ó noite de Natal, que travo a maresia!
Depois fui não sei quem que se perdeu na terra.
E quanto mais na terra a terra me envolvia
E quanto mais na terra fazia o norte de quem erra.
Vem tu, Poesia, vem, agora conduzir me
À beira desse cais onde Jesus nascia…
Serei dos que afinal, errando em terra firme,
Precisam de Jesus, de Mar, ou de Poesia?
Fonte:
Luis Gaspar (Seleção) http://www.truca.pt/ouro/obras/david_mourao_ferreira.html